Crónica de Mário de Sousa
Mingas
Passou-se há cerca de doze anos; começou em Bissau e terminou em Lisboa. Foi assim:
Domingas Seidi, ‘Mingas’, vendia fruta, ‘mango di faca’. Magrinha, espigadota, carita muito serena dizia-me sempre: ‘Pai, me compra mangos, são bons; vai vê qui vai gostá’. Eu enxotava-a ”… Não amiga, não quero mangos. Depois! … A cidade está cheia de crianças que vendem qualquer coisa. E ela lá ia, rua fora bamboleando um rabo encarrapitado em duas pernas magras e compridas. Não tinha mais de 8 ou 9 anos; uma vez perguntei-lhe, ‘ …já fiz dez…’ e espetou sete dedos no ar. Vivia no bairro do Cuntum mesmo à beirinha da banca de Samba Djaló.
Um dia à hora de almoço, na esquina do restaurante, lá estava a Mingas carregando uma cabaça cheia de mangos. Sussurrou-me num lamento: ‘Pai, compra um mango, Mingas precisa de dinhero piquenino pra comprá caderno. Escola vai começá’.
Disse-lhe que não, que não queria e que não era bonito estar a mentir. Arregalou muito os olhos; … ‘Pai, preciso mesmo di caderno’… Não Mingas agora não!
Mas fiquei aborrecido comigo próprio e no sábado a seguir, resolvi procurar Mingas. Manhã cedo, rumei ao Cuntum e depois de muito porfiar lá encontrei a banca de Samba Djaló, muçulmano encarquilhado que a troco de uma nota, se decidiu a chamar Mingas:
‘Mingasssssssssss … stá qui branco pra falá cum bo’
Era verdade o caderno. Enchi-me de brios e, passado um par de horas estava de volta com uma mochila carregada com cadernos, livro da 1ª. Classe e um estojo com régua, lápis, borracha e afia. Bem à vista, uma linda caixa de lápis de cor. Prometi à mãe de Mingas uma mesada para ajudar na escola. E assim cumpri enquanto permaneci por aquelas paragens.
Dos encontros com Mingas pela cidade, acontecia sempre a recusa. … Não Mingas, não quero mangos, obrigado… ’ E logo lhe perguntava pela escola, como iam as coisas. Mingas vaidosa da sua sabedoria um dia exibiu com orgulho um papel com o seu nome. … ’Escrevi tudo sozinha!’.
O tempo correu e já perto da minha partida cruzei-me com ela; … ‘Pai mi compra mango hoje; Pai nunca me compra nada, vai … se nunca comprá como podemos ficá amigos? ‘… Não quero Mingas; nem tenho como levar os mangos. Mas olha, amigos podemos ser e ficar… e pus-lhe duas moedas de 1000 francos na mão. Correu atrás de mim: ‘Então leva um, eu ti dou, num precisa pagá; vai vê qui gosta, é muito bom.’ E estendeu-me um mango que lhe enchia a mãozita magra de dedos compridos, que evidenciavam já as asperezas da vida. Olhei naqueles olhos enormes, e senti uma ternura imensa por aquela criança. Fiz-lhe uma festa na cabeça e aceitei o mango.
… Sim claro Mingas, obrigado!… vamos ser amigos. E nunca mais a vi!
Os anos passaram. Há uns meses em Lisboa fui almoçar a um restaurante na Rua dos Correeiros, ‘A Covelense’. Entrei, procurei uma mesa e sentei-me. De trás do balcão, a empregada, ementa de baixo do braço, dirigiu-se para a mesa, pão e manteiga na mão. Fiquei de boca aberta, na minha frente uma figura esguia, magra mas elegante no seu avental branco a contrastar com a sua pele negra aveludada e brilhante, largo sorriso exibindo uns dentes bonitos, simétricos, marfinados, olhava-me com uns olhos grandes de expressão ladina. Estendeu-me a ementa e com uma voz que me pareceu vinda de longe disse: ‘Pai, o que vai querer almoçar?’
Senti um nó na garganta, e foi com comoção que abracei Mingas, agora já uma mulher. Olhei-a enquanto lhe segurava as mãos e vi duas lágrimas a riscarem as faces. Pela minha parte, engolia furiosamente em seco para que o mesmo não me acontecesse.
Mingas tinha acabado o 11º. ano na Escola Portuguesa de Bissau e com o auxílio de uma bolsa de estudo tinha rumado a Lisboa para prosseguir os estudos. Mas o Governo da Guiné-Bissau atrasava-se sempre com o pagamento da bolsa e ela, como outros estudantes guineenses, tinha-se socorrido de um emprego em part-time para arranjar algum dinheiro que apagasse os tropeções dos dinheiros que teimavam em não chegar de Bissau.
Almocei com gosto. Já passavam das três da tarde quando bebi o café, e como o restaurante estava vazio sentou-se um pouco na minha mesa; recordámos os nossos encontros em Bissau, os mangos que não lhe comprei, a primeira mochila que lhe dei, enfim, desfiámos as nossas memórias drenando ternura entre os nossos corações. O tempo voou.
Pedi a conta, paguei e chegou a hora da despedida. Mingas com um esgar malandro disse: … spera Pai, volto já…; voltou com as mãos dentro dos bolsos do avental e uma cara muito séria. Dirigimo-nos para a porta e lá, com um beijo húmido de uma lágrima teimosa, Mingas tirou do bolso um mango, estendeu-me a mão e com a voz a tremer disse: … ’Pai é pra ti, é pra podermos continuá amigos! Aceita, vai vê qui vai gostá!’
Mingas não terminou os estudos. O dinheiro da bolsa foi faltando até que desapareceu. Quando o visto de estudante terminou voltou para a sua Bissau. Hoje, casada, vive em Dakar no Senegal.
Mafra, 14 de Abril de 2022
Mário de Sousa
Chorei, Mário de Sousa, mas o salgado de algumas lágrimas sabe tão bem!
Caro Zé grato pelo seu apontamento. Abraço. Mário de Sousa